“Brincando com o coração”: festas juninas em tempos de pandemia¹
Por Aterlane Martins.
“Ai
que saudades que eu sinto,
das
noites de São João,
das
noites tão brasileiras na fogueira,
sob
o luar do sertão.
Meninos
brincando de roda,
velhos
soltando balão,
moços
em volta à fogueira,
brincando
com o coração.
Eita,
São João dos meus sonhos,
eita,
saudoso sertão, ai, ai.²”
Há,
desde que João Guimarães Rosa escreveu no Grande Sertão: veredas³, uma
passagem literária que define e reafirma o sentimento também vivido por nós que
somos corpos, corações e almas juninas, mesmo quando a experiência
territorial nos limita ao espaço urbano, à vida na cidade: “O sertão é
dentro da gente”.
Falar
de “dentro”, aqui, tem muitos sentidos. O que nos é interno, o que está
guardado, protegido, para ser revelado, não para ser escondido. É como diz
Antônio Cicero em seu poema Guardar:
“Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la,
mirá-la por admirá-la, isto é,
iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é,
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é,
fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é,
velar por ela, isto é,
estar acordado por ela, isto é,
ou ser por ela.4”
O que faremos em 2020 é guardar o
São João.
Assim
como fazemos com o sertão imaginado, às vezes vivido, que é trazê-lo do
interior, do Brasil profundo, preservando-o, transformando-o, deslocando–o às
nossas realidades a cada ano. Outra vez o faremos este ano, em meio aos tempos
pandêmicos, que nos forçam a (re)imaginá-lo, (re)inventá-lo, para vivê-lo
contemporaneamente.
Falar das festas juninas, o São João brasileiro, é falar desse
múltiplo dentro, desse sentimento interno, dessa experiência internalizada,
vivida, que a cada temporada junina externamos, cada vez mais em espetáculos
artísticos, profissionalmente qualificados, a serem partilhados coletivamente
com outros corpos, corações e almas, também juninas, que aguardam
as revelações que interpretam e seguem construindo identidades culturais5 que
nos fortalecem e representam o que somos como indivíduo e como grupo social,
como cearenses, nordestinos, brasileiros: diversos.
Em
2020, não faremos fogueiras, nem soltaremos balões (há muito tempo já não o
fazemos, não é ecológico, atentam à vida – e este ano, mais do que nunca, é
importante defender a vida antes de tudo. Sobrevivamos!). Não faremos festivais
de quadrilhas juninas. Não faremos apresentações de novos espetáculos de
quadrilhas juninas. Não sentaremos à mesa para exercer julgamentos e determinar
campeãs. Não faremos presença em grandes festas juninas, elas não acontecerão.
Não reuniremos, presencialmente, os amigos, a família, para celebrar, entre
comes e bebes juninos, os sentidos do São João: estar juntos em festa. Não
professaremos, coletivamente, credos aos santos juninos ou seus equivalentes em
quaisquer celebrações religiosas. Contudo, estas chamas “das noites tão
brasileiras” não se apagarão.
Em
2020, nos tempos de isolamento social e vivências virtuais, revisitaremos o São
João de outrora para vivê-lo hoje. Será a memória viva, construída no agora,
que nos conectará pelo fio da tradição: “O que lembro, tenho”, novamente
Guimarães Rosa nos define.
Será
pelas lembranças do vivido que presentificaremos as festas juninas. Será, de
dentro de casa, de frente às telas frias de equipamentos tecnológicos, que
veremos e faremos o São João. Será por meio de conferências virtuais, que
rompem distâncias geográficas – mas as mantêm fisicamente – para promover
encontros, que nos confraternizaremos nas celebrações juninas. Será na busca
por mais conhecimentos que nos encontraremos, via aplicativos de comunicação,
para produção de novos saberes compartilhados. Será por meio das redes sociais,
das plataformas de comunicação, dos aplicativos de mensagens, que seguiremos
mobilizando e reunindo o movimento junino na pauta política de sua manutenção
junto às instituições e aos agentes públicos de cultura, para que fomentem e
garantam este direito constitucional.
Em
suma, é na poesia, é na luta, é na “vida
como ela é”, que faremos o São João 2020. Ele está em nós. Nós somos o São
João, sempre.
Numa manhã
chuvosa, nas prévias de junho.
Fortaleza, 31
de maio de 2020.
1Este texto ensaístico emocional não se
destina à análise crítica da situação das festas juninas em tempos pandêmicos,
apenas a situa previamente. Outros poderão fazê-la. Este texto escrevo e dedico
à pessoa do colega jurado José Fábio Silva de Souza, o Bina, que nos deixou em
decorrência da Covid-19, em memória de todas e todos os quadrilheiros atingidos
em sofrimento por esta pandemia.
2Noites brasileiras, canção escrita pelo
compositor pernambucano Zé Dantas (José de Souza Dantas Filho, 1921-1962),
gravada pelo seu parceiro Luiz Gonzaga, no LP de 78 rotações lançado pela
gravadora Victor, em 1954. Esta música integra o cancioneiro tradicional junino
brasileiro.
3Grande Sertão: veredas, obra seminal
para a compreensão da cultura brasileira, apresenta reflexões profundas sobre o
Brasil profundo, sobre o sertão e os sertanejos através da saga de Riobaldo em
torno de um amor improvável, impossível e real por Diadorim. Romance
experimental lançado em 1956 pela Livraria José Olympio Editora.
4Guardar é título do poema citado e do
livro que o apresenta, lançado em 2008, pela editora Record. O seu uso aqui se
dá, como quis o poeta/autor, para evocar o sentido arcaico da palavra,
preservado em outras línguas latinas, mas que em português perdeu seu uso.
Guardar é ver.
5Para compreender identidade na perspectiva que aqui utilizo, aplicando ao
contexto das festas juninas e seus fazedores, sugiro a leitura de Memória
e Identidade, de Joël Candau (2012), em especial me refiro ao seguinte
trecho: “Se identidade, memória e patrimônio são ‘as três
palavras-chaves da consciência contemporânea’ – poderíamos, aliás, reduzir a
duas se admitirmos que o patrimônio é uma dimensão da memória – é a memória,
podemos afirmar, que vem fortalecer a identidade, tanto no nível individual
quanto no coletivo: assim, restituir a memória desaparecida de uma pessoa é
restituir a sua identidade.” (CANDAU, 2012, p.16).
Aterlane
Martins é professor (IFCE campus de
Quixadá), historiador e pesquisador (GEPPM UFC/CNPq) do campo do patrimônio
cultural. É quadrilheiro e jurado de festivais de quadrilhas juninas desde os
anos 1990. Integra o movimento junino, atualmente, envolvendo-se com estudos e
formação, efetivados a partir da Rede Nacional de Pesquisadores em Cultura
Junina (em processo de rearticulação) e na participação em projetos públicos e
privados na área cultural, em especial dos festejos juninos.
Comentários
Postar um comentário